"Deus às vezes utiliza formas no
mínimo curiosas para reaproximar algumas pessoas. Não que eu esteja
questionando isso; não mesmo! Mas, apenas por curiosidade, fico me perguntando por
que tem que ser assim..."
Talvez
a resposta seja tão óbvia e clara, mas eu ainda não consigo enxergar.
A exemplo disso vejam o caso de meu
pai e eu: um homem de mais de sessenta anos e seu filho de vinte e poucos.
Ambos se dão bem, possuem uma normal relação de pai e filho, porém por alguns
motivos essa relação possui uma ausência de alguns tipos de expressões afetivas
e palavras afáveis. Resumindo: é uma seca, porém respeitosa relação; e para
completar, facilmente uma desavença pode surgir entre nós dois. Muitas vezes
parecemos até dois velhos amigos briguentos e inseparáveis.
Eu não ligo. Sei que a irritação e
todo aquele clima de vazio dentro de casa é passageiro e que logo Deus moverá
seus pauzinhos para que reatemos os laços. Embora a relação continue da mesma
forma: seca, porém respeitosa. Lembro-me bem de quando nós discutimos por causa
de uma bobagem que ele havia cometido na qual tinha deixado minha mãe muito
desapontada. E, penso que naquela pequena, mas indestrutível família de pai,
mãe e seu único filho, quem não merecia qualquer tipo de sofrimento era minha
mãe. Por favor, não confundam; não desejo mau nenhum para meu pai. Eu amo os
dois seres que foram os responsáveis pela minha chegada ao mundo, entretanto,
mamãe era a mais sensível quando se tratava de problemas com a família. É
evidente que como toda mãe, ela não deixava transparecer isso, se agarrando
sempre àquela forte personalidade.
Mas, um dia ocorreu um evento no
qual me fez ficar muito mais tempo sem falar com meu pai do que eu costumava
ficar. E não agüentando mais essa situação, mamãe interveio, chegando a mim com
palavras ditas de um jeito que só ela sabia:
- Já faz mais de seis meses que
vocês não se falam. Você foi sempre assim... Mesmo sabendo que jamais
desrespeitaria seu pai, e sendo o bom filho que é, não se dá ao trabalho de
tentar entender os sentimentos ou a maneira dele pensar.
- Eu
até posso fazer uma idéia de como ele pensa ou quais são os seus sentimentos
mamãe. A questão aqui é o porque dele não demonstrar isso pelo menos para sua
família e pensar de forma tão intransigente. Sei que isso vem de sua herança
familiar, a maneira pelo qual ele foi criado e tudo isso reflete em sua
personalidade hoje. Mas ainda assim... Ainda assim algo aqui na minha mente não
me deixa compreender isso completamente. Talvez eu tenha herdado um pouco desse
jeito cabeça-dura dele.
- Entendo.
Mas escute o conselho de alguém que já convive com aquele homem a mais de
trinta anos: Se não quiser que um dia você possua a mesma personalidade e trate
seu filho da mesma maneira um dia, então é melhor você se conformar e aceitar o
fato de que esse lado duro de seu pai jamais irá mudar. E que mesmo ele tendo
esse defeito, suas qualidades fazem dele uma pessoa maravilhosa.
Quando tivemos essa conversa, já faltavam
poucos dias para o Natal. Data na qual a união de uma família se solidifica
cada vez mais, porém não era o que parecia no caso da minha.
Tinha recebido um convite para fazer
parte de uma festa de confraternização de natal com amigos da faculdade. A
previsão era de começar às 14:00 e terminar pelo menos Ás 18:00. Tudo bem para
mim já que a data cairia em um sábado. Só que minha mãe não aprovou muito a
idéia, pois para ela em um dia como Natal, a família deve ficar junta; ainda
mais quando a família é tão pequena. Mas como a festa terminaria cedo então
resolvi ir de qualquer jeito. Seria uma boa oportunidade também para esquecer
um pouco os problemas que estava tendo com meu pai.
Chegou o dia da festa. Muito
empolgado para rever os amigos, me despedi da minha mãe com muita animação. O
curioso é que meu pai não estava em casa naquela hora. Talvez ele ficou sabendo
da festa e preferiu nem ver o momento em que eu partisse.
Enquanto estava sendo levado por um
de meus amigos no carro, fiquei imaginando como a festa seria divertida. Mas
meus planos desabaram devido a um inesperado infortúnio: devido a um ato
irresponsável de um motorista provavelmente bêbado, meu amigo foi forçado a
desviar de forma tão brusca que acabou perdendo o controle da direção. Como
resultado o carro saiu da estrada e bateu de lado e com força em uma árvore. E
advinha qual foi o lado que bateu na árvore? O meu claro...
Duas costelas quebradas, perna
direita fraturada em dois lugares, clavícula deslocada e uma fratura no
antebraço, além das diversas escoriações que com certeza renderão belas
cicatrizes foram os meus primeiros presentes de natal... Mas ainda assim fiquei
contente que eu e meu amigo saímos vivos dessa. Ele sofreu algumas escoriações
leves na cabeça, uma torção no pulso direito além de dois profundos cortes no
mesmo.
Não demorou para o socorro chegasse
depois que chamamos pelo celular. Quando
a ambulância chegou, meu amigo que já apresentava sinais de tontura desmaiou.
Eu consegui manter a consciência apesar da dor insuportável.
Como era o único hospital daquela
pequena cidade, não demorou muito para que meus pais soubessem do ocorrido.
Chegando lá, minha mãe desabou em desespero ao me ver na cama, com uma perna e
um braço engessados além de alguns curativos pelo corpo.
Meu pai ficou observando tudo sem
dizer uma palavra! Com aquela já conhecida expressão dura que bastava uma
olhada para saber o que ele estava pensando. Depois de ter ficado alguns
minutos ali; vendo minha mãe chorando de alívio junto a mim, ele pediu para que
ela se retirasse por algum tempo para que ele pudesse ter um particular comigo.
Já fazia idéia do que iria ouvir...
Meu pai era curto e preciso nas
palavras. Não que ele fosse um exímio na habilidade de falar, porém possuía a
sabedoria de poucos. Mas naquele dia... Naquele dia de natal ele se superou.
-
Escute com atenção, e não diga nada; pois sabe muito bem que não gosto de ser
interrompido:
- Você
sempre fez questão de deixar claro que respeita e sempre quer o bem de seus
pais, porém ao mesmo tempo tem certas desavenças com seu pai e se preocupa
muito com a fragilidade de sua mãe. E ainda assim, você não deu ouvidos a ela
em um dia como hoje, sabendo que é tão importante para a família. Como
resultado de tudo isso, olha como você terminou! Era esse o natal que você
queria? Sei que minhas palavras não têm muito efeito em você, mas custava ter
escutado sua mãe?
Ele estava certo. Não tive coragem
(e nem poderia) de dizer nem uma única palavra depois de ter ouvido tudo
aquilo. Eu não sabia nem para onde olhar; tinha perdido até a coragem de olhar
ele nos olhos como fazia de costume. O único lugar que sobrou foi o teto. Com
certeza, não foi esse o natal que tinha planejado para mim.
Depois de alguns perturbadores e
agonizantes minutos de silêncio, meu pai chegou mais perto, olhou para mim
ainda com a mesma expressão que tinha desde que entrou no quarto enquanto
enfiou a mão no bolso. Ao puxar o objeto do bolso percebi que se tratava de uma
pequena caixa embalada por um colorido papel de presente. Enquanto ele
aproximava sua mão de mim, percebi que ela estava tremendo. Ele não deixou o
presente em minhas mãos, mas sim em meu peito semi-coberto pelo lençol para em
seguida dizer mais algumas palavras que me surpreenderiam muito mais do que as
anteriores:
- Na
hora que você tinha saído para a tal festa eu estava sozinho pelas lojas para
comprar uma lembrança para você. Pensei em pedir ajuda a sua mãe, mas meu
orgulho não deixou. Tinha que fazer isso sozinho. Mas percebi que sou péssimo
para comprar presentes mesmo para meu próprio filho! Isso porque nem sei
direito do que você gosta. Porque as últimas palavras que tínhamos trocado a
mais de seis meses atrás foram cheias de rancor que hoje acredito ambos ter se
arrependido de ter dito. Eu não vou me zangar nem um pouco se você disser que
não gostou do presente, mas peço que pelo menos abra e o experimente.
Sem dizer nada eu simplesmente o fiz;
abri o presente. Era um relógio. E como ele pediu, fui experimentar, mas
enquanto eu tentava com dificuldade colocar o relógio no pulso devido à boa
parte de meu braço engessado, meu pai já com os olhos afogados em lágrimas e
com a voz trêmula que quase não conseguia pronunciar as palavras disse:
- Só
mais uma coisa: Feliz natal seu idiota!
Foram as últimas coisas que ele
conseguiu ter forças de dizer. Depois disso ele se aproximou de mim e afagou
meu rosto com suas mãos, aproximando o rosto dele ao meu. E enquanto isso ele
chorava muito. Nessa hora senti um aperto seguido de um calor tão forte no
peito e um nó na garganta que parecia querer me sufocar. Sem resistir mais, me
entreguei totalmente as minhas lágrimas na qual eu lutava para não deixar sair.
E mesmo sentindo dor devido às lesões do acidente, o abracei com tanta força
como se fosse a primeira vez que o visse.
Ficamos daquele jeito por alguns
minutos que se eternizaram na minha mente. Uma sensação que jamais esquecerei
mesmo depois que eu partir desse mundo.
Em relação ao presente ele tinha
razão: não era muito bom em escolhas, pois eu não gostava de usar relógio.
Porém ele não sabia de uma coisa; o melhor presente ele tinha me dado sem que
nem mesmo tivesse percebido. Afeto, palavras carinhosas e um caloroso e amável
gesto paterno que qualquer filho se sentiria a pessoa mais feliz do mundo ao
receber.
Depois que minha mãe voltou para o
quarto, ficamos ali; nós três. Unidos mais do que nunca. Aquele foi o nosso
natal. Com certeza, não foi nada do que eu havia planejado, mas foi um dos
melhores natais da minha vida.
Não
importa se foi em um hospital. Mas sim que eu estava junto da minha família.
Uma pequena, porém indestrutível família.
Às
vezes Deus une pessoas de maneiras estranhas, incompreensíveis, mas não faz
diferença. Pois o que ele une, nada ou ninguém pode separar.
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